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Talentos.

Eu não sou bom em muitas coisas, ou melhor, eu não sou especialmente bom em nada. Mesmo que já me tenham dito muitas vezes que é impossível ser ruim em todas as coisas, eu continuo não enxergando algum tipo de vantagem que eu naturalmente levo em cima da maioria das pessoas em algo. Talvez eu tenha um talento escondido muito específico, como em hóquei no gelo, mas eu moro no Brasil e isso tornaria esse meu talento não tão útil. Observando os talentosos mais próximos a mim, eu consigo enxergar muitas pessoas com uma grande facilidade em exatas, mas eu mesmo me sinto muito "atrasado" nesse sentido, quando vejo que muitas pessoas têm um dom natural com coisas que eu demorei muito tempo pra conseguir entender algo sobre.

É triste pensar nisso porque isso não se aplica só com números, mas também com jogos, por exemplo. Eu jogo xadrez há muito tempo, mais do que eu consigo lembrar, e qualquer pessoa que sabe como as peças funcionam consegue me ganhar se tentar bastante. É engraçado porque não se aplica só nos números ou no xadrez, mas também nos esportes, onde eu também sou péssimo, mesmo quando eu passo muito tempo praticando. Quando penso nas coisas que me considero bom, percebo que não nasci bom naquilo, tornei-me bom.

Sinto-me genuinamente atrasado nas coisas e, com honestidade, isso pode até que ser bom. Eu consigo gostar das coisas porque gosto bastante da dificuldade de algo. Quando eu entro de cabeça em um universo novo, eu almejo alcançar o grau mais difícil de competência. Por exemplo, eu escrevo este texto utilizando o GNU Emacs, que é um editor de texto um pouco difícil de se introduzir a alguém, mas eu me esforcei bastante pra aprender a usar. Sou muito feliz pela experiência que tive e gosto do prazer de superar desafios. Afinal de contas, a minha vida se baseia em superar obstaculos e eu amo isso de paixão.

Apesar desse espetáculo que envolve observar as coisas ruins pelos seus lados bons, eu confesso que me sinto muito triste com a solidão que não ser bom em algo me proporciona. Eu sinto inveja e me sinto sozinho neste mundo onde todas as pessoas são boas em alguma coisa. É como se todas elas tivessem um propósito de nascença e a natureza desse uma dica de pra onde elas devem seguir. Entretanto, eu não tenho essa dica, eu não sei o que fazer. Sendo ruim em todas as atividades, sinto dificuldade em gostar muito de algo e acabo tentando de tudo pra encontrar esse talento que parece não existir.

Talento é uma palavra difícil de engolir quando não se tem um, ou pelo menos quando não se conhece o seu próprio talento. Talvez o meu talento seja ter empatia, mas essa empatia é inconstante ao passo que é destruída com frequência pelo meu lado mau. Talvez meu talento seja falar sobre coisas totalmente imprevisíveis, mas isso não é algo interessante o suficiente para que eu considere como um talento útil. Talvez eu não tenha talento e esse seja o meu "talento", o que me torna diferente.

Com efeito, percebo que talvez não ter um talento seja a minha melhor individualidade, porque eu posso experienciar a dificuldade em todas as coisas e, por conseguinte, sentir os infinitos prazeres da vida, que envolvem sempre superar as dificuldades que ela propõe. Que coisa boa é pensar que eu não sou limitado pela zona de conforto que é ser bom em algo e, por vício, ficar preso àquilo. Na verdade, como eu não sou bom em nada, eu faço de tudo e, apesar da solidão que é estar nessa situação, acho que posso me sentir abençoado por ser o escolhido pelo mundo a ser um dos poucos homens sem talento.

K. L. Melo